Enquanto conversamos, ela sorri. Eu a observo como fazia algum tempo atrás.
Sorrisos, eles realmente significam alguma coisa? Tanto faz.
Mas agora ela tem um sorriso nos lábios e ele quase me engana. Quase.
Permita-me voltar um pouco no tempo. Será uma história rápida, eu prometo.
Brigas entre seus pais sempre fizeram parte da vida daquela criança. Naquela inocência ela pensava que isso era normal entre os pais de todas as famílias. Ela não sabia porque chorava.
"Vagabunda" ela ouviu sair da boa do pai em uma noite. "Vagabunda!" ela ouvia antes do barulho surdo de uma pancada. Um após o outro ela ouvia aquele barulho surdo seguido dos gritos de sua mãe. Ela dormiu aquela noite assim, ouvindo e com um luxo de lágrimas saindo involuntariamente dos seus olhos já ardidos de tanto chorar. Pela manhã as malas de viagem estavam arrumadas, postas ao lado dos sapatos de seu pai.
-Papai, você vai viajar?- Ela perguntou esfregando os olhos.
-Vou- Ele respondeu olhando-a nos olhos- Ana eu tenho que sair daqui.
-Por que?
-Sua mãe é uma vagabunda- Ele respondeu. Mas afinal o que essa palavra "vagabunda" significava?
Ela cresceu sem pai. Sem o dinheiro dele, as coisas em casa foram ficando cada vez mais complicadas.
No dia de seu aniversário de 15 anos, sua mãe a chamou pela manhã e disse:
-Hoje eu tenho um presente para você minha querida.
Presente? Fazia tanto tempo que ela não ouvia essa palavra que automaticamente ficou euforica.
-Você vai trabalhar na venda do seu tio- A mãe continuou- trabalhará e ajudará com as contas aqui de casa.
E enquanto suas amigas saiam com os garotos. ela trabalhava.
Trabalhava e para compensar a sua tristeza habitual ela comia, comia e comia, como para soterrar a tristeza.
Cada vez menos Ana olhava ao espelho. Ela tinha apenas 17 anos quando tentou o suicidio pela primeira vez.
Os rapazes, esses ela só usava e era usada. Gostava de sexo, qual é o problema? Gostava de sexo mas sonhava com o dia em que faria amor. Sonhava com o dia em que alguem a pediria em casamento e teria filhos com esse alguem. Jamais aconteceria com ela o que aconteceu com sua familia. Ela seria feliz.
Aos 23 anos trabalhava em um banco muito importante da sua cidade. Dinheiro não faltava, o que faltava era a vontade de gastar, aonde gastar. Não comprava roupas, com aquele corpo nada ficaria bonito. Gastava tudo em livros e filmes, seu refugio do mundo.
Nos livros e filmes não importava ela era gorda ou depressiva. Ela era feliz quando lia.
Acompanhei essa garota por todo esse tempo e tive que sair da vida dela assim como seu pai. Que pretenção a minha fazer essa comparação.
Hoje anos após aquele último dia, vejo seu rosto outra vez.
Agora ela tem um sorriso nos lábios e ele quase me engana. Quase.
Não são os lábios que falam. Você deve estar pensando em como sou impertinente ao contar uma história que nem a mim pertence. Mas basta desviar a atenção dos lábios para os olhos por um instante. Os olhos falam muito mais que os lábios.

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